Qualquer ação que aconteça, podemos sempre buscar o motivo na programação
WIE: É claro que você acredita que
tudo que nós fazemos é porque é a vontade de Deus que nós o façamos. Mas me
parece que isso só faria realmente sentido no caso de um indivíduo que chegou
ao fim do caminho espiritual - que tenha acabado com o ego - porque as ações
dessa pessoa não estão a serviço de si mesma e, portanto, não surgiria nenhuma
deformação com a vontade de Deus. Mas até esse ponto, se um indivíduo age
incorretamente em relação a outro, bem poderia ser somente uma reação
compulsiva porque a pessoa sente-se egoísta. Se este é o caso, então o que você
diz poderia realmente ser usado como uma justificativa para um comportamento
desagradável ou agressivo. Você acaba de dizer, "é tudo a vontade de Deus.
Não tem importância!"
Ramsh Balsekar: Sei, mas isso é a verdade. Sua
pergunta real é, "por que Deus criou o mundo como é?" Mas veja, um
ser humano é somente um objeto criado que é parte da totalidade da manifestação
que veio da Fonte. Portanto minha resposta é: "um objeto criado jamais
poderia conhecer seu criador!" Deixe-me trazer uma metáfora. Vamos
imaginar que você pinte um quadro, e nesse quadro você pinta uma figura. Então
aquela figura quer saber primeiro, por que você, como um pintor pintou esse
quadro particular, e segundo, por que você pintou aquela figura de modo tão
feio! Veja, como pode um objeto criado jamais conhecer a vontade do próprio
criador? Meu ponto de vista é que, embora seja assim, isso não o impede de
fazer o que você pensa que você deva fazer! Aceitar que nada acontece a menos
que seja a vontade de Deus, isso não impede a qualquer pessoa de fazer o que
ela pensa que deva fazer. Poderia ser de outra forma?
WIE: Mas baseado nesta linha de
raciocínio, como disse antes, seria bastante fácil concluir que, "Ok, tudo
é a vontade de Deus, não importa o que acontece!"
RB: Quer dizer, "Então por que
deveria fazer qualquer coisa em vez de ficar na cama o dia inteiro?"
WIE: Sim, por que continuar a fazer
qualquer esforço?
RB: A resposta é que a energia dentro
deste organismo corpo/mente não permitirá a este organismo corpo/mente
permanecer inativo nem mesmo por um momento. A energia continuará a produzir
alguma ação, física ou mental, a cada instante, de acordo com a programação do
organismo corpo/mente e o destino do organismo corpo/mente, que é a vontade de
Deus. Mas isso não impede a você, que ainda pensa que é um indivíduo, de fazer
o que você pensa que você deve fazer. Portanto, o que de fato eu digo é,
"Aquilo que você pensa que você deve fazer em qualquer situação, em
qualquer momento particular, é precisamente aquilo que Deus quer que você pense
que você deve fazer!" Definitivamente, aceitar a vontade de Deus não vai
impedi-lo de fazer o que você pensa que você deve fazer. Vê? Aliás, você não
pode fazer nada mais que fazê-lo!
WIE: De acordo com sua maneira de ver
o mundo, isso soa como se, tudo que quer que nós consideremos como sendo nossa
escolha, nossa própria vontade e responsabilidade, foi transferida do indivíduo
para Deus ou a Consciência. É isso o que você diz?
RB: Quando você pensa que é você quem
faz, o que acontece? Há culpa, orgulho, ódio e inveja. Mas isso ainda não
impede ao que acontece de continuar a acontecer. Mas quando você pensa que você
não faz, então não há nenhuma culpa, nenhum orgulho, nenhum ódio, nenhuma
inveja! A vida torna-se mais pacífica.
WIE: Leio algo num folheto escrito por
vários de seus estudantes que parece relevante a esse propósito. Diz:
"Aquilo que você gosta só pode ser porque é a vontade de Deus que você
goste. Nada pode acontecer a menos que seja Sua vontade".
RB: Sim, é isso.
WIE: O folheto também diz: "Não
se sinta culpado mesmo que um adultério aconteça. Você, a Fonte, é sempre
pura".
RB: Isso é Ramana Maharshi quem
disse.
WIE: Meu ponto é que a Fonte pode ser
sempre pura, mas novamente, parece-me que isso poderia facilmente ser tomado
como uma desculpa para agir sem consciência. Você poderia dizer, "não
importa se cometo adultério, não importa se machuco meus amigos porque é
simplesmente uma ação que acontece". Poderia facilmente ser tomada como
uma permissão para agir segundo meu desejo, só porque me aconteceu de ter
aquele desejo.
RB: Mas não é isso que acontece?
WIE: Acontece, certamente, mas...
RB: Quer dizer que aconteceria mais
frequentemente?
WIE: Com facilidade, poderia acontecer
mais. Eu poderia dizer, "Hei, não importa o que eu faça agora. Eu não devo
conter-me se sinto um desejo". É claro o que eu quero dizer?
RB: A pergunta, normalmente formulada
seria essa: "Se eu realmente não faço nada, o que me impede de pegar uma
metralhadora e sair por aí e matar vinte pessoas?" É isto que você
pergunta, não?
WIE: Bem, isso é um exemplo extremo.
RB: Sim, vamos pegar um exemplo
extremo!
WIE: Mas eu acho que seria mais
interessante considerar o exemplo do adultério, porque muita gente realmente
não faria algo tão extremo como sair por aí de metralhadora para derrubar
outras pessoas.
RB: Bem. É a mesma coisa quando
conversamos sobre cometer adultério. Os psicólogos e biólogos,
baseados em suas pesquisas, chegaram à conclusão que se você trair sua esposa,
você não deve se culpar.
WIE: Bem, eu não creio que essa seja a
opinião de toda a comunidade científica.
RB: O que eu digo é isso, cada vez
mais os cientistas estão chegando à conclusão que os místicos sempre
sustentaram - de que qualquer ação que aconteça, podemos sempre buscar o motivo
na programação.
WIE: Dou-me conta de que, em alguns
casos, isto pode ser verdade, mas deixe-me dizer, por exemplo, que eu tenha o
desejo de cometer adultério. Posso dizer, "deve ser a vontade de Deus que
eu faça isto e então seguirei adiante" ou, posso conter-me e não causar
tanto sofrimento para meus amigos. Não seria melhor se eu me contivesse?
RB: Então o que é que o impede de se
conter? Faça como quiser! O que o impede de conter-se? Contenha-se!
WIE: Meu ponto de vista é que é melhor
fazer assim!
RB: Também é o meu.
WIE: Mas de acordo com sua visão,
assim eu poderia facilmente dizer, "se eu sinto esse desejo, deve ser
porque é a vontade de Deus", e então não me contenho.
RB: Você afirma que você sabe que
deveria se conter, então por que você não se contém? Se um organismo
corpo/mente não é programado para trair sua esposa, então qualquer coisa que
digam os outros, ele não o fará. Se você for programado de maneira que você não
levantará sua mão contra ninguém, você começará a matar as pessoas? Agora, se
existisse uma lei permitindo que você bata em sua esposa sem que você corra
nenhum risco, você começaria a surrar sua esposa? Não, a menos que o organismo
corpo/mente seja programado para fazer isso, e se é programado para fazer isso,
o fará de qualquer jeito. Então como disse, aceitar a vontade de Deus não vai
impedi-lo de fazer qualquer coisa que você pense que você deva fazer. Faça-a!
Faça exatamente aquilo que você acha que deva ser feito!
WIE: Todavia, no final, como podemos
dizer que sabemos que é destino ou a vontade de Deus? Tudo que nós sabemos é
que certos eventos se manifestam. Em seguida, podemos rever algo que fizemos e
admitir, "Aconteceu, simplesmente" e se gostamos, podemos chamá-lo de
destino. Mas não é mais exato dizer que nós realmente não sabemos se é destino
ou não?
RB: Esse é o ponto. Nós não sabemos.
WIE: Mas dizer que não sabemos é
diferente de dizer "sabemos que é a vontade de Deus". É diferente de
dizer "sabemos que tudo é predestinado". Veja, me parece que você
quer afirmar que você sabe que tudo é a vontade de Deus.
RB: Nós não sabemos, e isto é um
fato; então se você quiser você pode jogar fora o conceito de destino e dizer
que ninguém realmente pode saber alguma coisa sobre nada. Ótimo! Não há nenhuma
necessidade de manter o conceito de destino. Afinal de contas, se aceita que o
que acontece não está em seu controle, então quem estaria preocupado com o
destino?
WIE: Já que muitos buscadores
espirituais vêm a você para receber algum conselho sobre o caminho espiritual,
eu gostaria de saber que valor, se é que tem algum valor, você dá ao caminho
espiritual como instrumento em direção à Iluminação.
RB: Se a sadhana [a prática
espiritual] é necessária, um organismo corpo/mente é programado para seguir uma
sadhana.
WIE: Em outras palavras, se tem que
acontecer, acontece?
RB: Isso mesmo. As pessoas às vezes
me perguntam, "Se nada está em nossas mãos, deveríamos meditar ou
não?" Minha resposta é muito simples. Se vocês gostam de meditar, meditem;
se vocês não gostam de meditar, não se forcem a meditar.
WIE: A busca espiritual então é um
obstáculo para Iluminação?
RB: Sim, buscar é o maior obstáculo
por causa da presença do buscador. O buscador é o obstáculo - não a busca; a
busca acontece por si mesma. A busca acontece porque o organismo corpo/mente é
programado para buscar. Se a busca da iluminação acontece, então o organismo
corpo/mente foi programado para buscar. O obstáculo é o buscador que diz,
"quero a Iluminação".
WIE: Então porque tantos sábios
falaram sobre a importância da busca? Ramana Maharshi disse que o buscador tem
que querer a Iluminação com a mesma intensidade que um homem que esteja
afogando-se quer o ar, com o mesmo grau de concentração e sinceridade.
RB: Certamente. Portanto isso quer
dizer que tem que ter esse tipo de intensidade na busca. Mas ele também disse,
"Se você quer fazer um esforço, você deve fazer um esforço; mas se o
esforço não é destinado a acontecer, o esforço não será feito". É isso que
Ramana Maharshi disse. Então veja, se alguém busca ou não busca não está em seu
controle. Se a busca por Deus ou a busca pelo dinheiro acontece, não é nem seu
mérito nem sua culpa.
WIE: Num de seus livros você afirmou
que alguém realmente alcançou certa profundidade de entendimento quando pode
dizer, "eu não estou nem aí se a Iluminação acontece ou não neste
organismo corpo/mente".
RB: É verdade. Quando alcança esse
estágio, então significa que o buscador não está mais aí. Está extremamente
perto da Iluminação porque se não há ninguém que se interesse, então não há
mais nenhum buscador.
WIE: Mas o resultado não pode ser uma
indiferença extraordinariamente profunda que não é Iluminação?
RB: Isso poderia levar a Iluminação!
WIE: Tenho mais uma pergunta. Você
frequentemente diz que nós deveríamos "somente aceitar o que é".
RB: Sim, se é possível para você
fazer isto - e isto não está em seu controle!
Ramesh Balsekar
EPÍLOGO
Enquanto passei meio zonzo pelo
porteiro e saia nas ruas tumultuadas de Bombaim, minha mente vacilava. Como
poderia ser, perguntei-me enquanto abria caminho no meio da multidão, que um
homem educado e inteligente como Ramesh Balsekar pudesse realmente acreditar
que tudo seja predestinado, que antes de ter nascido, nosso destino já estava
gravado numa espécie de granito etéreo? Poderia ele ser realmente sério em sua
insistência de que nossa vida inteira, com seu fluxo aparentemente interminável
de escolhas e decisões e oportunidades para sistematizar o próprio curso para
melhor ou para pior, seja realmente, desde o primeiro respiro, um destino?
Enquanto atravessava a calçada em busca
de um café, onde encontrar um refúgio do caos, os pontos difíceis de nosso
breve diálogo iam passando em minha cabeça. Sim, "Assim seja" é a
essência da maioria das religiões, pensei comigo, mas para os grandes místicos
e sábios que fizeram tais declarações por toda a história, a rendição à vontade
de Deus tem um significado muito maior do que simplesmente aceitar que não há
nada que ninguém possa fazer para influenciar as circunstâncias da vida.
Certamente aquilo que tradicionalmente se referia “à vontade Deus" é algo
que alguém descobre quando o ego foi absolutamente abandonado, quando todas as
motivações egoísticas foram todas queimadas, deixando-o completamente rendido
para cumprir a vontade de Deus, qualquer que ela seja! Para um Jesus ou um
Ramakrishna ou um Ramana Maharshi dizer que se rendeu à vontade de Deus é um
fato. Mas dizer que isto é verdade para todo o mundo, naquele momento,
pareceu-me refletir uma forma perigosa e particular de loucura que poderia ser
usada para justificar as mais extremas formas de comportamento.
A declaração de Balsekar, "O que
você acha que você deve fazer em qualquer situação... é precisamente aquilo que
Deus quer que você ache que deva fazer", significa que para ele o Buda
Iluminado não está fazendo em medida maior a vontade de Deus que o assassino em
série que ataca sua próxima vítima. Tinha vindo à entrevista esperando que
houvesse algum desacordo, mas de qualquer forma até os livros de Balsekar, nos
quais todas essas ideias são claramente e repetidamente expressadas, não me
tinham preparado para meu encontro com o homem. Como tinham lhe surgido essas
ideias? Perguntei-me. E por quê? Meus pensamentos rodavam e rodavam,
lembrando-me de sua arrepiante afirmação de que, mesmo quando machucamos
alguém, não precisamos sentirmo-nos culpados, pois nós não somos responsáveis
por nossas ações - que mesmo "Hitler foi meramente um instrumento através
do qual os acontecimentos horríveis que tinham que acontecer aconteceram".
Sua afirmação, desafiando todo bom senso, que nós não temos nenhum poder de
controlar nosso comportamento ou até de influenciar o dos outros. E tudo isto
no contexto de sua descrição fantástica de todos nós como "organismos
corpo/mente, exercitando nossa 'programação'".
De repente, a visão bem-vinda de uma
loja de chá apareceu através da névoa e enquanto conseguia um espaço para entrar,
senti alívio ao achar aquele tipo de oásis tranquilo que tinha esperado
encontrar. Foi aí, numa das muitas mesas vazias, enquanto o primeiro gole de
chá ao leite de sabor adocicado passava pelos meus lábios, que num flash, minha
ficha caiu. Eu não estava bebendo aquele chá! Eu não estava sentado naquela
mesa! De fato, eu não era aquele que tinha entrado na loja de chá. E eu não era
aquele que acabava de se atormentar durante uma hora numa conversa com um homem
que naquele momento começava a parecer como um indivíduo são. Aliás, eu nunca
tinha feito alguma coisa. Era como se um peso que eu tinha carregado durante
minha vida inteira de repente fosse levantado no céu graças a um balão de ar
quente, e levado para longe, para nunca mais voltar novamente.
Todos aqueles
anos eu tinha lutado para virar um ser humano melhor, mais generoso e mais
honesto - todo aquele esforço que eu tinha feito para renunciar a minhas
inclinações de superioridade, egoísmo e agressividade - foram todos uma louca
empreitada, todos estupidamente e sem necessidade, baseados na ideia importante
de que eu tinha algum controle sobre meu destino e a mesquinha presunção de que
aquilo que eu fazia pudesse importar aos "outros". Como podia ter me
desviado tanto? Mas espera, não era sequer eu quem se tinha desviado! Como se
as nuvens se abrissem, de relance agora eu vejo claramente que aquilo que eu
tinha pensado como "a minha vida" tinha sido na verdade somente um
processo mecânico. A pessoa que eu pensava ser, sempre tinha sido somente uma
máquina. E o mundo em que eu pensei que eu tinha vivido não era, como tinha
suposto, um mundo de complexidade humana, mas um mundo de simplicidade
mecanicista, de ordem perfeita, um matemático desenrolar de programas em
movimento, desde o começo do tempo. Como a perfeição clínica do plano
científico de Deus começou a abrir-se perante mim, a emoção extática da
liberdade absoluta - da preocupação, do cuidado, da obrigação, da culpa -
começou a fluir pelas minhas veias como uma torrente sem margens. E com isso veio
uma paz envolvente e retumbante, uma cessação absoluta de tensão, no
reconhecimento de que nenhuma ambiguidade aparente ou incerteza eu poderia
encontrar daí pra frente, não importa quais decisões aparentemente difíceis
poderia encontrar, eu poderia sempre descansar na certeza de que qualquer
escolha que eu fizer era exatamente a escolha que Deus queria que eu fizesse. A
sensação misteriosa de um desconhecido que tinha me arrastado por tanto tempo
tinha evaporado. Os outros no café viraram suas cabeças enquanto eu ria alto,
uma risada longa, de barriga, e fiquei pensando comigo mesmo que jogo
fantástico seria a vida se todo o mundo entendesse como ela realmente funciona,
se todo o mundo pudesse pelo menos ter um vislumbre de como poderíamos ser
livres se todos vivêssemos no Planeta Advaita."
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